Tutela da pessoa com transtorno do espectro autista – parte 2

No primeiro texto desta minissérie de artigos, procurei demonstrar que o autismo constitui um espectro associado a um transtorno do desenvolvimento, que afeta aspectos do comportamento, interação social e comunicação.[1]

Deixou-se claro, ademais, que as pessoas com TEA devem ser juridicamente reconhecidas como pessoas com deficiência para todos os fins em Direito, dado enfrentarem uma imensa gama de barreiras sociais que limitam a plena funcionalidade do cidadão.

Postas estas necessárias premissas, esse segundo texto se volta a analisar direitos específicos estabelecidos pelas legislações protetivas às pessoas com TEA.

Nesse sentido, a Lei Berenice Piana (Lei 12.764/2012) previu uma série de diretrizes aplicáveis à Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com TEA, ressaltando-se a intersetorialidade no desenvolvimento das ações e políticas, a participação comunitária e o controle social, além da atenção integral às necessidades de saúde da pessoa com TEA.

Incluiu também o estímulo à inserção da pessoa com TEA no mercado de trabalho, a responsabilidade do poder público pela informação relativa ao transtorno, o incentivo à formação e capacitação de profissionais e o estímulo à pesquisa científica sobre o tema no país (art. 2º).

A fim de cumprir com as diretrizes fixadas, pode ainda o poder público firmar contrato de direito público ou convênio com pessoas jurídicas de direito privado, conforme estabelece o parágrafo único do artigo 2º.

Doravante, dentre os direitos estabelecidos no artigo 3º, cumpre destacar a importância do acesso à atenção integral nos serviços de saúde (inc. III). De suma relevância a disposição da alínea “a” referente ao diagnóstico precoce (ainda que não definitivo) do transtorno do desenvolvimento, que, nas pessoas com TEA, pode ser feito antes dos três anos completos de idade.

Com a confirmação do diagnóstico, recomenda-se a prescrição de tratamento tempestivo, capaz de evitar maiores prejuízos de socialização e reduzir as barreiras de comunicação e aprendizagem. Os atendimentos costumam ser realizados por equipes multiprofissionais, formadas por psicólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, nutricionistas etc.

Dentre os modelos terapêuticos possíveis, destaca-se o uso do método ABA (Applied Behavior Analysis), sigla que designa a análise do comportamento aplicada. A abordagem estimula o processo de aprendizagem por meio intervenções comportamentais, auxiliando o desenvolvimento das habilidades necessárias para maior independência do indivíduo.[2]

A respeito do atendimento multidisciplinar, o artigo 5º da Lei 12.764/2012 abriga instrumento indispensável de combate à discriminação nos serviços privados de saúde, assegurando que a pessoa com TEA “não será impedida de participar de planos privados de assistência à saúde em razão de sua condição de pessoa com deficiência”.

Nesta senda, negativas de cobertura a atendimentos multiprofissionais e limitações às sessões de tratamento terapêutico tendem a violar frontalmente o direito à atenção integral da saúde das pessoas com TEA, configurando conduta abusiva por parte dos planos de saúde.

Foi o que pacificou o Superior Tribunal de Justiça (STJ). No julgamento dos EREsp 1.889.704/SP, embora fixando a tese quanto à taxatividade do rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, a 2ª Seção negou provimento aos embargos de divergência opostos pelas operadoras, concluindo ser abusiva a recusa de cobertura de sessões de terapia especializada prescritas para o tratamento do TEA, considerando, para tanto, a superveniência das Resoluções Normativas ANS 469/2021 e 539/2022.

Mais recentemente, a Lei 14.454/2022 reforçou a possibilidade de cobertura de exames e tratamentos não incluídos no rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar. Segundo a novel legislação, o rol de procedimentos da ANS passa a constituir “referência básica” para os planos privados, podendo a cobertura ser autorizada diante da comprovação da (i) eficácia científica do tratamento e de plano terapêutico, além da (ii) recomendação de órgão de avaliação de tecnologias em saúde (ex: Conitec).

Outro direito previsto na legislação, que desafia as políticas públicas brasileiras, refere-se ao atendimento educacional especializado (AEE), modalidade de apoio componente do paradigma de educação inclusiva. Referido direito social encontra supedâneo no inc. III do art. 208 da CF/1988, do art. 24 da Convenção de Nova Iorque,[3] do inc. III do art. 54 do ECA, do inc. III do art. 4º da LDBE e do art. 28 da LBI.

Referendando toda a normativa antes apontada, a Lei 12.764/2012 assegura à pessoa com TEA o direito a um acompanhante especializado nas classes comuns de ensino regular, modalidade de apoio que deve ser compreendida à luz das necessidades específicas do sujeito.

Como bem aponta a doutrina, o parágrafo único do artigo 3º abriga dois requisitos para a incidência do acompanhante especializado: i) estar o aluno com TEA incluído nas classes comuns de ensino regular; ii) haver comprovada necessidade de acompanhamento.

O primeiro requisito é de ordem objetiva: estando matriculada em uma classe comum do ensino regular, deve-se fornecer o acompanhante especializado. Já o segundo é de ordem subjetiva: depende de comprovação da necessidade, geralmente atestada por laudo médico ou relatório de equipe de apoio multiprofissional.[4]

O Decreto 8.368/2014, que regulamenta a Lei Berenice Piana, reforça o direito supracitado, conforme § 2º do art. 3º: “caso seja comprovada a necessidade de apoio às atividades de comunicação, interação social, locomoção, alimentação e cuidados pessoais, a instituição de ensino em que a pessoa com transtorno do espectro autista ou com outra deficiência estiver matriculada disponibilizará acompanhante especializado no contexto escolar”.

Outra importante disposição de combate à discriminação, refere-se à criminalização da conduta do gestor escolar ou da autoridade competente que recusa a matrícula de aluno com TEA (art. 7º). O tipo penal atrai a pena de multa de 3 (três) a 20 (vinte) salários-mínimos, com a possibilidade de perda do cargo, em caso de reincidência, após processo administrativo (§ 1º).

A normativa apontada deve ser lida em conjunto aos artigos 28, § 1º, e 30, caput, da LBI, cuja constitucionalidade foi recentemente reconhecida pelo STF no julgamento da ADI 5.357/DF, que acenou pela obrigatoriedade da implementação do atendimento educacional especializado às pessoas com deficiência por parte das escolas privadas.

A decisão do STF encerrou a discussão a respeito da (im)possibilidade de cobrança de valores adicionais para custeio dos apoios necessários às pessoas com deficiência, no qual se inclui, inexoravelmente, a disponibilização do acompanhante especializado às pessoas com TEA.

Seguindo a trilha das legislações específicas, cumpre mencionar as relevantes – porém, polêmicas – contribuições trazidas pela Lei 13.977/2020, conhecida como Lei Romeo Mion, que alterou a Lei Berenice Piana e a Lei da Gratuidade dos Atos de Cidadania (Lei 9.265/1996), criando a Carteira de Identificação da pessoa com TEA (CIPTEA), de expedição gratuita.

Consoante prevê o artigo 3º-A da Lei Berenice Piana, a CIPTEA tem o intuito de “garantir atenção integral, pronto atendimento e prioridade no atendimento e no acesso aos serviços públicos e privados, em especial nas áreas de saúde, educação e assistência social”.

Para fins de expedição pelos órgãos responsáveis, a legislação exige o prévio requerimento administrativo, acompanhado do relatório médico com a indicação do CID. O pedido deve conter informações mínimas a respeito da identificação do beneficiário e seus responsáveis, fotografia, identificação do órgão expedidor e assinatura do dirigente responsável.[5]

A legislação prevê ainda que a CIPTEA terá validade de cinco anos, mantendo-se atualizados os dados cadastrais do identificado com o mesmo número, de modo a permitir a contagem das pessoas com TEA em todo o território nacional.

A CIPTEA é elogiável por facilitar à identificação das pessoas com TEA em órgãos públicos e privados, considerando que o autismo não constitui uma deficiência visível. Evita-se, com isso, os transtornos do transporte de documentos e a repetida apresentação de laudos médicos nos órgãos de atendimento.

Louvável, ainda, a possibilidade de registro e contabilização das pessoas com TEA nos estados e municípios, fonte de dados que pode favorecer ações e políticas específicas em favor desse segmento populacional, nos mesmos rumos adotados pela Lei 13.861/2019, que garantiu a obrigatoriedade da inclusão das pessoas com TEA nos censos demográficos.

Contudo, é preciso ter cautela para que a CIPTEA não sirva a propósitos capacitistas[6] ou favoreça à segregação das pessoas com TEA, inclusive em relação a outras pessoas com deficiência. A carteira deve facilitar o exercício de direitos e não promover maior exclusão.

Os propósitos inclusivos só serão alcançados mediante prévia capacitação dos responsáveis pelo atendimento das pessoas com TEA e organização dos serviços públicos e privados. Só o tempo dirá, portanto, se CIPTEA alcançará todas as potencialidades almejadas.

Muito embora esse texto tenha se dedicado a discutir direitos previstos em legislações específicas, não é demais lembrar, face à equiparação protetiva, que as pessoas com TEA possuem todos os demais direitos reconhecidos no ordenamento jurídicos às pessoas com deficiência,[7] em especial o benefício de prestação continuada de um salário mínimo mensal.

É certo que o Brasil ainda se encontra distante de cumprir toda a política nacional de proteção às pessoas com TEA. Contudo, é possível observar um avanço considerável na conscientização e operacionalização dos direitos atinentes a esse segmento populacional, fruto da incansável luta do movimento autista na última década.

Os dois textos publicados nesta coluna procuraram contribuir com esse movimento por igual cidadania, ao propor algumas reflexões jurídicas sobre o autismo e os direitos previstos nas legislações específicas.

Nutre-se a esperança de que, com maior informação e conscientização, o acesso à justiça das pessoas com transtorno do espectro autista pode ser aperfeiçoado em nosso sistema de justiça!

*

Este escrito é dedicado à estagiária da Defensoria Pública Mariana Beatriz Regis, mãe da Gabi, pessoa com transtorno do espectro autista.

[1] Justamente por se tratar de um espectro de sintomas e não de uma doença com causas genéticas ou parentais, o autismo não pode ser tomado como algo “mutável” ou que “pode deixar de existir”, como equivocadamente supôs o Governador Tarcísio de Freitas, ao justificar o veto ao PL nº 665/2020, que previa a validade indeterminada de laudos médicos aos cidadãos com TEA no Estado de São Paulo. Ao contrário do que sustentado, o transtorno do espectro autista é uma condição permanente, podendo-se cogitar de intervenções terapêuticas para tratamento e desenvolvimento de habilidades e maior autonomia, mas não de cura. A notícia pode ser conferida em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2023/02/governo-tarcisio-diz-que-autismo-em-criancas-pode-passar-o-que-e-refutado-por-especialistas.shtml

[2] Há diversos outros métodos terapêuticos, como a TEACCH (Treatment and Education of Autistic and related Communication-handicapped Children), programa clínico-educacional voltado a autistas e crianças com déficits de comunicação, e o PECS (Picture Exchange Communication System), sistema de comunicação alternativa e ampliada por troca de imagem.

[3] Neste sentido, a alínea “d” do artigo 24.2 da Convenção Internacional dispõe que os Estados-Partes assegurarão que “as pessoas com deficiência recebam o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação”.

[4] BRAGA-KENYON, Paula; TIBYRIÇÁ, Renata Flores; ANDRADE, Maria América. Acompanhante Especializado no Ensino Regular. In: TIBYRIÇÁ, Renata Flores; D’ANTINO, Maria Eloisa Famá. Direitos das pessoas com autismo: comentários interdisciplinares à Lei 12.764/12. São Paulo: Memnon Edições Científicas, 2018, p. 66/67.

[5] Nos casos em que a pessoa com TEA seja imigrante detentor de visto temporário ou de autorização de residência, residente fronteiriço ou solicitante de refúgio, condiciona-se à apresentação da Cédula de Identidade de Estrangeiro (CIE), da Carteira de Registro Nacional Migratório (CRNM) ou do Documento Provisório de Registro Nacional Migratório (DPRNM), com validade em todo o território nacional.

[6] Sobre o capacitismo, conferir texto publicado nesta coluna https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/a-tutela-juridica-da-pessoa-com-deficiencia-capacitismo-parte-1-11072022

[7] Nesse sentido, é possível ressaltar: i) benefício de prestação continuada de um salário mínimo mensal (Lei 8.742/93); ii) benefício da meia-entrada para acesso a eventos artístico-culturais e esportivos (Decreto 8537/2015); iii) redução da jornada de trabalho (Lei 13.370/2016); iv) gratuidade no transporte interestadual (Lei 8.899/1994); v) isenção do IPVA veicular e do IPI e ICMS para aquisição de automóveis; vi) reserva de vagas em estacionamento de veículos; vii) desconto nas passagens aéreas para acompanhantes (Resolução Anac 208/2013); viii) preferência na restituição do IR; ix) reserva de vagas empregatícias em empresas privadas com cem ou mais empregados (Lei 8.213/1991); x) reserva percentual de vaga de cargos e empregos públicos (Lei 8.112/1990), dentre outros direitos estabelecidos.

Compartilhe seu amor

Atualizações da newsletter

Enter your email address below and subscribe to our newsletter

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Pular para o conteúdo