Hoje, sexta-feira, é dia de mais um capítulo do projeto “Dúvida Trabalhista? Pergunte ao Professor!” dedicado a responder às perguntas dos leitores do JOTA, sob a Coordenação Acadêmica do professor de Direito do Trabalho e coordenador Trabalhista da Editora Mizuno,Ricardo Calcini.
O projeto tem periodicidade quinzenal, cujas publicações são veiculadas sempre às sextas-feiras. E a você leitor(a) que deseja ter acesso completo às dúvidas respondidas até aqui pelos professores, basta acessar o portal com a #pergunte ao professor.
Neste episódio de nº 97 da série, a dúvida a ser respondida é a seguinte:
Pergunta ► É possível o enquadramento de pessoas com surdez unilateral, como deficiência, para efeitos de inclusão em cotas?
Resposta ► Com a palavra, o professor Renato Gouvêa dos Reis.
Cumpre exemplificar que PcD é uma sigla que significa “Pessoa com Deficiência”. É utilizada para se referir às pessoas que possuem limitações permanentes (pessoas com deficiência visual, auditiva, física, intelectual ou múltiplas). É importante saber que são consideradas limitações permanentes quando a pessoa nasce com limitações ou as adquire ao longo da vida, sendo que tal “limitação”, não tem cura, devendo a pessoa se adaptar àquela situação.
A “surdez parcial/unilateral” consiste na perda da audição em apenas um dos ouvidos e coloca os pacientes em riscos permanentes, pois dificulta a identificação da direção do som, impactando diretamente na vida social e profissional do indivíduo.
Segundo a Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID10), publicada pela Organização Mundial da Saúde, a perda auditiva pode ser condutiva, neurossensorial ou mista.
O Decreto 5.296/04 [1] restringe a deficiência auditiva à perda bilateral, parcial ou total, de 41 decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas frequências de 500 Hz, 1.000 Hz, 2.000 Hz e 3.000 Hz, tendo, em razão disso, direito à reserva de vagas. Logo, pelo Decreto 5.296/04, as pessoas com audição unilateral não são consideradas com necessidades especiais e, portanto, não podem ocupar uma dessas vagas nas empresas privadas ou em concursos públicos.
Ocorre que a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência [2], e que já foi ratificada pelo Brasil inclusive com status de Emenda Constitucional, conceitua pessoa com deficiência como aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversos barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.
Ademais, há que se considerar os princípios da dignidade da pessoa humana e da não discriminação, que abrangem os casos de deficiência não descritos no referido decreto, mas protegidos pela Convenção Internacional.
Ainda, a teoria do “Enfoque de Direitos Humanos” representa um novo paradigma hermenêutico que propõe interpretação e aplicação do Direito do Trabalho orientada por uma visão humanística, na qual os direitos sociais são enxergados como direitos humanos, com vistas à sua efetividade, destacando o valor social do trabalho e o trabalhador enquanto ser humano nas relações laborais. Assim, é possível estender o conceito de pessoa com deficiência para além dos ditames do Decreto nº 3298/1999, devendo haver uma análise em conjunto da Convenção Internacional com as leis ordinárias já aplicadas no Brasil.
Com efeito, sustenta-se a interpretação sistêmica dos incisos I e II do artigo 3º do referido decreto no sentido de que a perda total e irreversível da audição de um dos ouvidos é suficiente para o reconhecimento da deficiência. Além do mais, o rol previsto no artigo 4º não é exaustivo, devendo ser admitidas também outras limitações que impedem o trabalho dentro dos padrões normais.
Em consonância aos preceitos destacados anteriormente, o Tribunal Superior do Trabalho vem consolidando o entendimento que abarca a surdez unilateral qualificadora da pessoa com necessidades especiais e que, por tal razão, em caso de concurso público, deve ser reputada como candidata aprovada na qualidade de pessoa com deficiência[3].
Ressalte-se que a mesma lógica interpretativa aplicada aos casos relacionados ao preenchimento de vagas em concurso público deve ser estendida para as vagas no setor privado, tendo em vista que a mudança do tipo de empregador não altera a natureza de deficiência daquela pessoa que tenha efetiva surdez unilateral.
No entanto, o Superior Tribunal de Justiça, que era até então o grande propulsor do enquadramento dos candidatos a concurso público na categoria de PNE/PCDs, proferiu um julgado inovador, contrariando o posicionamento anteriormente já pacificado nos Tribunais, bem como editou a Súmula 552 que assim dispõe: “O portador de surdez unilateral não se qualifica como pessoa com deficiência para o fim de disputar as vagas reservadas em concursos públicos”. Tal entendimento, no caso, contrariou à época inclusive decisões STF acerca da temática [4].
Entrementes, frise-se que o TST apresenta posicionamento próprio acerca do assunto, de sorte que é importante que se tenha em mente a necessidade de laudo e/ou perícia técnica para fins de atestar que o interessado seja portador de surdez unilateral severa (superior a 41 decibéis).
Após todas as considerações destacadas, conclui-se que a lei não descreve taxativamente que a surdez unilateral se enquadra como PCD, muito embora o TST tenha posição recente a favor do enquadramento da surdez unilateral como PCD em casos severos (igual ou superior a 41db), analisando a norma de forma mais ampla e subjetiva ao caso concreto de cada indivíduo.
A legislação brasileira ainda não contempla a surdez unilateral no rol de pessoas com deficiência, mas cumpre esclarecer que os Estados Federativos possuem competência para legislar sobre a proteção de pessoas portadoras de deficiência, conforme dispõe o artigo 23, inciso II, da Constituição Federal. Exemplo disso é Estado de São Paulo[5], cuja legislação estadual está adequada às diretrizes da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, além de igualar o surdo unilateral às pessoas com visão monocular que já tinham o direito de concorrer nas vagas como deficiente.
E para se obter o reconhecimento da inclusão destes PcD’s, portadores de surdez unilateral, importante algumas medidas, como:
Mapear os portadores de surdez unilateral;
Providenciar laudo médico com intuito de verificar casos severos (igual ou superior a 41db aferida por audiograma nas frequências de 500 Hz, 1.000 Hz, 2.000 Hz e 3.000 Hz);
Providenciar laudo de decomposição dos locais/setores/postos de trabalho destes colaboradores;
Colaborar na produção de Projeto de Lei nos Estados Federativos que não possuam lei estadual acerca do tema; e
Utilizar o Poder Judiciário através de medidas que venham a garantir o enquadramento destes deficientes como inclusão e respectiva contagem para efeito de cumprimento de cota.
[1] Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Decreto/D5296.htm. Acesso em 15.12.2022.
[2] Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/convencao-sobre-os-direitos-das-pessoas-com-deficiencia. Acesso em 15.12.2022.
[3] TST-ReeNec- 5312-29.2013.5.09.0000, julgado em 04.05.2015, da relatoria do Ministro Caputo Bastos: REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA; TST- RO-1453-07.2012.5.03.0000, da relatoria do Ministro Maurício Godinho Delgado, julgado em 10.02.2014.
[4] STF - MS 29910 - DJE 01/08/2011 – ATA Nº 104/2011. DJE nº 146, divulgado em 29/07/2011 e STF, ARE 742890 / DF – DISTRITO FEDERAL, RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Julgamento: 18/06/2013, DJe-148 DIVULG 31/07/2013 PUBLIC 01/08/2013TST- RR 11800-35.2011.5.21.000, Rel. Ministro João Batista Brito Pereira, DJe de 15.10.12.
[5] Lei nº 16.769, de 18 de junho de 2018. Disponível em: https://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/lei/2018/lei-16769-18.06.2018.html. Acesso em 15.12.2022.