Pessoas com deficiência (PcDs) passaram a entrar com ações na Justiça de São Paulo para recuperar a isenção do Imposto sobre Propriedades de Veículos Automotores (IPVA) após perderem o benefício em razão da escalada de preços dos veículos nos últimos anos.
Elas argumentaram que a correção dos valores foi impactada pela instabilidade econômica no país e no exterior, de modo que a perda da isenção feriria a proporcionalidade e o princípio da isonomia que norteou a concessão do direito anteriormente.
Uma delas disse que comprou um Chevrolet Tracker em 2021 porque precisava de locomoção para seus tratamentos. A aquisição saiu por menos de R$ 70 mil à época, mas, com o aumento do preço do veículo, foi surpreendida pela atribuição do valor de mais de R$ 100 mil pelo poder público.
Pela lei, o direito à isenção vale para pessoas dentro do espectro autista ou com deficiência que possuem um automóvel cujo valor não supere R$ 70 mil. Para veículos avaliados entre R$ 70 mil e R$ 100 mil, há uma isenção parcial, com o pagamento apenas sobre a diferença. O benefício cai diante de números acima de R$ 100 mil.
A proprietária impetrou um mandado de segurança para tentar proteger seu direito à isenção, mas teve o pedido rejeitado pelo juiz Diogo Corrêa de Morais Aguiar, da Vara da Fazenda Pública de Jundiaí. A negativa se deveu ao fato de ela não ter demonstrado que o bem valia menos que o estipulado pela Fazenda Pública. Embora nesse caso a demanda não tenha sido bem sucedida na primeira instância, outros juízes julgaram de forma favorável às pessoas com deficiência.
Isenção não é imunidade
A isenção do IPVA não é feita de modo automático pelo valor do carro. Ela observa condições estabelecidas pela legislação. E, apesar de terem reconhecido excessos por causa da supervalorização dos veículos, juízes consideraram não haver inconstitucionalidade na forma de cobrança do tributo.
Fabio Sznifer, da Vara de Acidentes do Trabalho e do Juizado Especial da Fazenda Pública de Santos, lembrou que, embora a intenção do legislador tenha sido auxiliar pessoas com deficiência, a isenção deve ser interpretada de forma literal.
Existe um entendimento no Supremo Tribunal Federal (STF) de que a análise de casos sobre imunidade tributária (proteção a contribuintes definida pela Constituição) deve ser feita de modo extensivo. Não é o caso da isenção (dispensa estabelecida por normas inferiores), que demanda uma leitura restritiva.
Por isso, Tatiana Chiaradia, sócia do Candido Martins, admitiu que um olhar frio e técnico não revela nenhum exagero nas decisões. Ela argumentou que, diante do caso concreto, o magistrado tem toda a base de princípios e o arcabouço jurídico para tomar sua decisão.
Segundo a tributarista, não é que a pessoa tenha comprado um carro melhor ou ganhado mais dinheiro. Pelo contrário. Portanto, deveriam ser considerados os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, já que os PcDs foram afetados por questões de mercado, inflação e pandemia.
“Questões financeiras que impactaram o poder aquisitivo da pessoa não podem atingir, com razoabilidade, o direito da pessoa com deficiência à isenção,” afirmou a advogada. “Estamos vivendo um movimento inclusivo. Vamos manter as pessoas afastadas da sociedade ou reintegrá-las?”
Ajuste em prol da finalidade
O juiz Maurício Martines Chiado seguiu essa linha para declarar o direito de uma mulher à isenção parcial do IPVA de 2022, sob o argumento de que a valorização atípica do veículo não poderia ser usada como fundamento para a revogação de um benefício que já havia sido concedido antes.
“A interpretação literal do dispositivo gerará a perda do direito da autora apenas pelo fato da atípica valorização do veículo usado”, e isso “acaba por ofender os princípios da igualdade e da dignidade humana, e promove a exclusão de pessoa portadora de deficiência física, finalidade precípua da concessão da própria isenção,” destacou o magistrado.
O posicionamento foi endossado por Cassiano Menke, sócio de escritório Silveiro Advogados e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Para ele, a legislação tributária não pode se aproveitar de uma mudança no status econômico para produzir uma desigualdade, sobretudo se o critério não é a capacidade de contribuir, mas o de inclusão.
Menke foi buscar argumentos na Teoria Geral do Direito e, a partir dela, sustentou que “a necessidade, ou o dever, de interpretar literalmente as normas de exceção, como é a isenção, não significa que não se deva fazer uma interpretação teleológica dessas normas para que seu âmbito de aplicação seja ajustado à promoção das finalidades”.
O objetivo de fixar alguns valores como parâmetros, afirmou o professor, é o de adequar a norma a uma variação do preço dos veículos. Mas isso não significa que não se possa realizar um ajuste, em situações pontuais, para que a legislação continue a promover a sua finalidade — que não é arrecadatória, e, sim, de inclusão.
Tabela do IPVA e legalidade
A lei paulista estabelece que a base de cálculo para o IPVA será determinada por uma portaria divulgada pela Fazenda. O que a secretaria faz é utilizar os valores da Tabela FIPE do ano anterior e usar como referência para a coleta do imposto. Daí decorre outra controvérsia.
De acordo com Eduardo Carvalho Caiuby, sócio do Pinheiro Neto Advogados, o processo preenche os requisitos da legalidade, mas não o da estrita legalidade. Isso porque, conforme a legislação tributária, a fixação deveria partir de uma lei. O advogado deu o exemplo do Distrito Federal, onde Câmara Legislativa aprova anualmente o reajuste do IPVA.
O Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul (TJMS) já decidiu, ao enfrentar uma questão semelhante, que o aumento da base de cálculo do IPVA, por decreto, violaria o princípio da reserva legal. Os desembargadores entenderam que não cabe ao governador elevar o valor do tributo por um ato executivo e sim ao Legislativo.
Caiuby considerou que a perda da isenção para o exercício de 2022 poderia ferir a razoabilidade, dado que “a pessoa já comprou com isenção no passado. Era um valor, o veículo era por aquele preço e, por uma questão de mercado, acaba-se tirando essa isenção por uma majoração que não teve muito a ver. E por portaria, não por lei”.
A reportagem não encontrou julgamentos na segunda instância do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), apenas na primeira.
Os números das decisões citadas nesta matéria, na ordem em que aparecem, são 1017577-51.2022.8.26.0309, 1014457-17.2022.8.26.0562 e 1001628-49.2022.8.26.0062.
Outras duas decisões serviram de base para construção da reportagem, mas não foram mencionadas ao longo do texto. Seus números são 1008533-96.2022.8.26.0506 e 1006515-52.2022.8.26.0361.