Uma das maiores inovações no plano dos apoios instituídos à pessoa com deficiência pela Lei Brasileira de Inclusão foi a tomada de decisão apoiada (TDA), inserida no Código Civil de 2002 pelo artigo 1.783-A.
Segundo o dispositivo, a TDA constitui “o processo pelo qual a pessoa com deficiência elege pelo menos 2 (duas) pessoas idôneas, com as quais mantenha vínculos e que gozem de sua confiança, para prestar-lhe apoio na tomada de decisão sobre atos da vida civil, fornecendo-lhes os elementos e informações necessários para que possa exercer sua capacidade”.
Inspirada em experiências estrangeiras, como na figura do “amministratore di sostegno” italiano, a TDA concretiza, no plano interno, o comando constitucional-convencional de reconhecimento igual perante a lei à pessoa com deficiência.
O instituto se inspira ainda no artigo 12.3 da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, o qual obriga os Estados a tomar “medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com deficiência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal”.
Juridicamente, a TDA possui a natureza de negócio jurídico bilateral, celebrado entre a pessoa com deficiência e dois ou mais apoiadores, tendo por objetivo a instituição de um auxílio prestado para o exercício e planejamento antecipado dos atos da vida civil.
Trata-se de prerrogativa personalíssima da pessoa com deficiência, que no plano processual se projeta na legitimidade exclusiva para o pedido de apoio perante o Poder Judiciário (art. 1.783-A, § 2º).
Que fique claro: o cônjuge, o companheiro e demais ascendentes e descendentes não podem pleitear a TDA em favor da pessoa com deficiência, assim como não pode fazê-lo o Ministério Público ou a Defensoria Pública.[1]
Também não poderá fixá-la de ofício o magistrado, como, aliás, já assentou o STJ, com base na interpretação sistemática dos parágrafos 1º, 2º e 3º do artigo 1.783-A (REsp 1.795.395/MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 4/5/2021).
A roborar esse entendimento, eis o enunciado 639 aprovado na VIII Jornada de Direito Civil pelo Conselho da Justiça Federal: “a opção pela tomada de decisão apoiada é de legitimidade exclusiva da pessoa com deficiência. A pessoa que requer o apoio pode manifestar, antecipadamente, sua vontade de que um, ou ambos os apoiadores se tornem, em caso de curatela, seus curadores”.
Diferentemente da curatela, a TDA preserva a autonomia individual, a liberdade de escolha e a participação-inclusão da pessoa com deficiência (art. 3º, “a” e “c”, Convenção de Nova Iorque), inexistindo no seu âmbito de aplicação a possibilidade de limitação ou restrição ao exercício de direitos, inclusive quanto aos de conteúdo negocial ou patrimonial.
O ato praticado pela pessoa apoiada, portanto, tem validade e surte efeitos jurídicos perante terceiros independentemente de representação ou assistência (art. 1783-A, § 4º). A TDA também não está restrita ao campo patrimonial, podendo alcançar a prática de outros atos da vida civil (ex: atos políticos, atos laborais, atos comunicacionais etc.).
A proteção, ademais, é prestada de maneira diversa, mediante auxílio material, aconselhamento, fornecimento de informações, comunicação facilitada, apoio psicológico, dentre outras possibilidades que preservem o exercício da capacidade e respeitem as vontades e preferências da pessoa com deficiência.
Em função dessas diferenças, parcela doutrinária chega a classificar a TDA como uma medida diametralmente oposta à curatela, asseverando que a primeira se faria presente em situações de capacidade civil plena, enquanto a segunda abrangeria situações de incapacidade civil relativa (art. 4º, inc. III).[2] Assim, segundo esta corrente, a TDA teria como pré-requisito a capacidade e a curatela a incapacidade.
Respeitosamente, discorda-se deste posicionamento. Os novos institutos trazidos pela Lei Brasileira de Inclusão devem ser encarados a partir do paradigma inclusivo e não com as lentes do passado.
Nesse sentido, as modalidades de apoio devem ser interpretadas a partir das necessidades da pessoa com deficiência e da exigência de remoção de barreiras e não a partir do binômio capacidade-incapacidade.
Nunca é demais enfatizar: a pessoa com deficiência é capaz. Ponto final. Não há mais vinculação entre deficiência e incapacidade. Doravante, os apoios não podem mais pautar sua instrumentalidade pela capacidade/incapacidade do indivíduo, devendo dirigir sua atenção à utilidade-adequação das medidas, que por sua vez é aferida a partir das necessidades concretas da pessoa com deficiência.
Referida orientação, aliás, consta do Comentário Geral nº 1 produzido pelo Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, que, ao interpretar o alcance do artigo 12, esclarece que os apoios não podem se pautar pela lógica da capacidade/incapacidade, sob pena de desobediência à Convenção.
Assim, “la prestación de apoyo para el ejercicio de la capacidad jurídica no debe depender de una evaluación de la capacidad mental; para ese apoyo en el ejercicio de la capacidad jurídica se requieren indicadores nuevos y no discriminatorios de las necessidades de apoyo”.
Perfeitamente possível, nessa linha, que uma pessoa com deficiência, em pleno juízo de suas faculdades mentais, opte pela curatela enquanto modalidade de apoio para a realização de um ato negocial episódico (ex: uma compra e venda).
Admite-se, igualmente, que ela opte pela curatela por não possuir em sua rede de solidariedade duas pessoas idôneas para o exercício da tomada de decisão apoiada.
Ela pode se estar ainda em situação de incapacidade relativa (ex: embriaguez ou adicção por entorpecentes) e optar pela TDA para o exercício de um ou mais atos da vida civil, modalidade de apoio menos restritiva do que a curatela.
Insiste-se: o que vai determinar a modalidade de apoio utilizada é a utilidade-adequação da medida e as necessidades da pessoa com deficiência e não a sua capacidade/incapacidade.
Doutro giro, é evidente que, por representar um negócio jurídico, a TDA irá depender do discernimento da pessoa com deficiência para a prática do ato, elemento que integra a exteriorização válida da vontade.
Sem discernimento, isto é, consciência do ato e de suas consequências, a celebração da TDA por pessoa com deficiência implicaria um ato jurídico inexistente.[3]
Ademais, por instituir uma modalidade de apoio menos restritiva, a TDA deve preterir a fixação de curatela, evitando restrições indevidas à capacidade negocial/patrimonial da pessoa com deficiência.
A nosso ver, portanto, a TDA não deve ser encarada propriamente como uma “alternativa” à curatela.[4] Ambos os institutos são modalidades de apoio coexistentes e concorrentes,[5] voltados exclusivamente à proteção da pessoa com deficiência e devem observar uma ordem de preferência à luz das possibilidades práticas.
Em uma escalada das modalidades de apoio, portanto, deve-se privilegiar o uso da TDA em detrimento da curatela, partindo dos instrumentos menos restritivos à capacidade do indivíduo para os mais restritivos.
Nada impede, entretanto, que a pessoa com deficiência se valha de ambos os institutos, voltando-se a TDA a um ato civil (ex: exercício de atos laborais etc.) e a curatela a um ato patrimonial episódico (ex: compra e venda).
Por derradeiro, tanto a TDA quanto a curatela devem ser encaradas como instrumentos de salvaguarda à pessoa com deficiência, incidindo de forma excepcional, extraordinária, proporcional às circunstâncias do caso e limitada no tempo pela necessidade concreta. Os apoios somente devem ser usados excepcionalmente e quando necessários.
Como se pode observar, se incentivada e bem utilizada, a tomada de decisão apoiada pode auxiliar na revolução do sistema de apoios dirigidos à pessoa com deficiência, hoje quase totalmente pautados pelo instituto da curatela.
Com este último texto, encerro a série especial sobre atualidades na tutela jurídica da pessoa com deficiência. Espero que esses escritos incentivem a discussão de temas contemporâneos e o uso de novos instrumentos jurídicos previstos na Lei Brasileira de Inclusão.
Nos vemos em breve!
[1] Ante a literalidade da lei e o intuito de preservar a plena capacidade da pessoa com deficiência, discorda-se neste ponto da doutrina de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, que entendem pela possibilidade de familiares e do Ministério Público deduzirem pedido de tomada de decisão apoiada. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Parte geral e LINDB. 14ª e. Salvador: Juspodvim, 2016, p. 341.
[2] FARIAS, Cristiano Chaves de; CUNHA, Rogério Sanches; PINTO, Ronaldo Batista. Estatuto da Pessoa com Deficiência comentado artigo por artigo. Salvador: Juspodvim, 2016, p. 241.
[3] EXPÓSITO, Gabriela. A capacidade processual da pessoa com deficiência intelectual. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 116.
[4] SANTOS, Ivana Assis Cruz dos. O Estatuto da Pessoa com Deficiência e as alterações no Código Civil de 2002. In: Revista Síntese Direito Previdenciário. São Paulo nº 78, ano XVI, maio/jun. 2017, p. 34; DANELUZZI, Maria Helena Marques Braceiro; MATHIAS, Maria Ligia Coelho. Repercussão do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015), nas legislações civil e processual civil. Revista de Direito Privado. São Paulo, vol. 66, abril/jun. 2016, p. 69; EXPÓSITO, A capacidade processual da pessoa com deficiência intelectual…, op. cit., p. 116.
[5] FILHO, Milton Paulo de Carvalho. Comentários ao art. 1783-A. In: PELUZO, Cezar. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência. 10ª e. Barueri/SP: Manole, 2016.